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RETROATIVIDADE E EFEITO IMEDIATO DA NORMA NOVA

Objeto de clássicos embates doutrinários, o conflito de leis no tempo gerava (e ainda gera) a seguinte indagação: os atos normativos nascem para vigorar somente no futuro ou podem voltar ao pretérito para disciplinar situações já consumadas antes na presença da nova regra?

As diversas naturezas das matérias reguladas pelos atos normativos (como, por exemplo, as normas cogentes, as matérias de ordem pública e as meramente ligadas ao direito privado) apimentam a discussão acerca da mediata ou imediata aplicação das leis regentes.

No que tange aos efeitos da lei nova, surgem três figuras jurídicas que exprimem o alcance de sua irradiação: a irretroatividade, a retroatividade e o efeito imediato da norma nova.

Olvidemos as leis criminais, cujo regramento quanto à matéria está especialmente traçado pelo art. 5.º, XL, da Lex Mater. A irretroatividade das leis é a regra em nosso ordenamento jurídico, por força do art. 6.º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) – a antiga Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), cujo título foi alterado para LINDB através da Lei n.º 12.376/2010 – corroborada pelo art. 5.º, XXXVI, da Constituição Federal.

Desta forma, é regra em nosso Direito que as leis não se voltam ao passado, só valendo para o futuro, seguindo o brocardo lex prospicit non respicit.

E qual a fundamentação para que as leis não retroajam e regulem atos e fatos jurídicos já consumados antes de sua vigência, nos moldes previstos em nosso corpo normativo?

A maior explicação à regra é o respeito à segurança jurídica. Vigendo apenas para o futuro, as leis observarão (e manterão inatacados) o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, postulados primazes de nosso Direito, albergados como pétreas e fundamentais garantias.

WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO (1997, p. 30-31), ao tratar da questão, demonstrou apreço à teoria da irretroatividade, embasado em inúmeros tratadistas clássicos:

Em regra, deve prevalecer o princípio da irretroatividade; as leis não têm efeitos pretéritos, elas só valem para o futuro (lex prospicit, non respicit). O princípio da não- retroprojeção constitui um dos postulados que dominam toda legislação contemporânea.

Na frase de Grenier, esse princípio é a própria moral da legislação.
Tão velho como o direito, ele é altamente político e social, inerente ao próprio sentimento da justiça. Sobre ele se assentam a estabilidade dos direitos adquiridos, a intangibilidade dos atos jurídicos perfeitos e a invulnerabilidade da coisa julgada, que, entre nós, constituem garantias constitucionais.
Esse princípio chegou outrora a ser considerado de direito natural, correspondente a uma justiça superior. Bartolo não hesitou em dizer que, embora com preceito expresso em contrário, não podiam as leis projetar seus efeitos no passado.
Waker, citando por Barbalho, afirmava que leis retroativas só tiranos as fazem e só escravos se lhes submetem. A retroatividade, proclamou-o Benjamin Constant, arrebata à lei seu caráter; lei que retroage não é lei.
(...)
Efetivamente, sem o princípio da irretroatividade, inexistiria qualquer segurança nas transações, a liberdade civil seria um mito, a estabilidade patrimonial desapareceria e a solidez dos negócios estaria sacrificada, para dar lugar a ambiente de apreensões e incertezas, impregnado de intranquilidade e altamente nocivo aos superiores interesses do indivíduo e da sociedade. Seria negação do próprio direito, cuja específica função, no dizer de Ruggiero Maroi, é tutela e garantia.

CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (1999, p. 91-92), trazendo à baila o histórico Código de Justiniano, segue pela mesma trilha de pensamento:

Em doutrina pura, ou no terreno da abstração filosófica, vige a noção universal consagrada da não-retroatividade da lei, seja porque a palavra legislativa se volta do presente para o futuro, com o propósito de estabelecer uma norma de disciplina que no plano teórico passa a construir uma regra de obediência a que as ações humanas pretéritas não podiam estar submissas, seja porque o efeito retrooperante da lei traz um atentado à estabilidade dos direitos, e violenta, com a surpresa da modificação legislativa, o planejamento das relações jurídicas instituído como base do comércio civil. Com esse sentido o Código de Justiniano proclamava ser próprio das leis dar forma aos negócios futuros, e não se voltarem para os fatos passados, muito embora admitisse a retroatividade, desde que expressamente determinada: “Leges et constitutiones futuris certum est dare formam negotiis, non ad facta praeterita revocari; nisi nominatim, et de praeterito tempore, et ad-huc pendentibus negotiis cautum” (Código, Livro I, tít. XIV, fr. 7).


Continua na próxima semana.