A nova Lei n.º 14.230/2021, que promoveu profunda reforma da Lei n.º 8.429/92 (a chamada Lei de Improbidade Administrativa – LIA), vem sendo alvo de reflexões, principalmente por alçar a pedestal o dolo, a intenção do agente público de se beneficiar com o ato ímprobo.
Certo é que a nova legislação flexibilizou a rigidez com a qual a redação anterior da LIA impunha aos agentes públicos a pecha de ímprobo, pois o ato volitivo, finalmente, tomou a devida relevância.
A maior exigência para a aplicação das sanções por improbidade, assim, levantou a deixa: seus efeitos retroagem aos atos praticados antes da assunção da Lei n.º 14.230/2021, por conta da garantia prevista no art. 5.º, XL, da Constituição Federal?
Vejamos. A Lei n.º 14.230/2021 inovou e trouxe para o âmbito das improbidades a aplicação dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador, acrescendo o § 4.º ao art. 1.º da LIA:
Art. 1.º, § 4.º, LIA: “Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”.
Assim o fez por ter a LIA natureza sancionatória. Para tanto, diante da finalidade de punir que salta da LIA, direcionada ao administrador tido por ímprobo, os princípios e garantias constitucionais serão também aplicados no âmbito das improbidades.
Por certo que a incidência dos direitos e garantias fundamentais trata de evitar abusos e arbitrariedades, submetendo o ius puniendi estatal a determinados princípios formais e materiais.
E a pretensão punitiva estatal que se curva aos princípios e garantias da Constituição não é meramente criminal. Toda e qualquer atenção punitiva do Estado subsume-se à proteção pétrea do art. 5.º, o que se estende, sem dúvidas, ao Direito Administrativo Sancionador.
Tanto é que o STF, ao julgar o MS 23.262/DF, relatado pelo Ministro Dias Toffoli, reconheceu que, aos processos administrativos sancionadores, também incide o princípio do estado de inocência.
Aplicando-se ao Direito Administrativo Sancionador – e, à luz do art. 1.º, § 4.º, da LIA, ao sistema de improbidades – as garantias previstas no art. 5.º da Lex Legum, igualmente impera sobre a LIA o princípio da retroatividade benéfica trazido pelo inciso XL, por se tratar de princípio aplicável não somente ao Direito Penal, mas a todo o Direito Sancionador, como já sedimentado pelo c. STJ:
DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA AO ACUSADO. APLICABILIDADE. EFEITOS PATRIMONIAIS. PERÍODO ANTERIOR À IMPETRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 269 E 271 DO STF. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973.
APLICABILIDADE.
I (...)
II - As condutas atribuídas ao Recorrente, apuradas no PAD que culminou na imposição da pena de demissão, ocorreram entre 03.11.2000 e 29.04.2003, ainda sob a vigência da Lei Municipal n. 8.979/79. Por outro lado, a sanção foi aplicada em 04.03.2008 (fls. 40/41e), quando já vigente a Lei Municipal n. 13.530/03, a qual prevê causas atenuantes de pena, não observadas na punição.
III - Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei Municipal n. 13.530/03, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente.
IV - Dessarte, cumpre à Administração Pública do Município de São Paulo rever a dosimetria da sanção, observando a legislação mais benéfica ao Recorrente, mantendo-se indenes os demais atos processuais.
V - A pretensão relativa à percepção de vencimentos e vantagens funcionais em período anterior ao manejo deste mandado de segurança, deve ser postulada na via ordinária, consoante inteligência dos enunciados das Súmulas n. 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal. Precedentes.
VI - Recurso em Mandado de Segurança parcialmente provido.
(STJ, Primeira Turma. RMS 37.031/SP, Rela. Mina. Regina Helena Costa, Fev/2018) (destaques nossos)
Celso Antônio Bandeira de Mello é enfático:
Reconhece-se a natureza administrativa de uma infração pela natureza da sanção que lhe corresponde, e se reconhece a natureza da sanção pela autoridade competente para impô-la. Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais. O que as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção, conforme correto e claríssimo ensinamento, que boamente sufragamos, de Heraldo Garcia Vitta.
(MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32.ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2015, p. 871).
A própria Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), promulgada em nosso ordenamento jurídico através do Decreto n.º 678/92, não limita a retroatividade benéfica à seara criminal:
Artigo 9. Princípio da legalidade e da retroatividade
Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado.
Dúvidas não restam, assim, que a novatio legis in mellius tem efeitos imediatos no sistema das improbidades, por força do § 4.º do art. 1.º da LIA, alcançando os atos praticados antes da assunção da Lei n.º 14.230/2021.