É certo que, desde os longínquos cânones do Direito Romano, nemo turpitudinem allegans propriam, ou, em bom e claro português, “não se pode alegar a própria torpeza em benefício próprio”.
Sendo assim, a torpeza, o dolo, o ato vil, não podem servir de escora para que o Poder Judiciário consagre direitos àquele que usa de tão ardilosa malícia em detrimento de outrem.
Neste toar, o uso da torpeza como alicerce do pedido gera a impossibilidade de aplicação e concessão das súplicas frente a existência de elementos jurídicos que as vedam, as afastam, as repudiam, conforme cátedra de ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER E CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO (1999, p. 256):
Às vezes, determinado pedido não tem a menor condição de ser apreciado pelo Poder Judiciário, porque já excluído a priori pelo ordenamento jurídico sem qualquer consideração das particularidades do caso concreto.
Pela mesma senda doutrinária transita HUMBERTO THEODORO JUNIOR (2000, p. 48):
Pela possibilidade jurídica, indica-se a exigência de que deve existir, abstratamente, dentro do ordenamento jurídico, um tipo de providência como a que se pede através da ação. Esse requisito, de tal sorte, consiste na prévia verificação que incumbe ao juiz fazer sobre a viabilidade jurídica da pretensão, deduzida pela parte em face do direito positivo em vigor. O exame realiza-se, assim, abstrata e idealmente, diante do ordenamento jurídico.
Ademais, a vedação do uso da própria torpeza, como princípio geral de Direito, tem aplicação em todo o sistema normativo, razão pela qual se torna juridicamente inviável o pedido ali fundamentado, conforme verbera TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR (1994, p. 247):
Já os princípios gerais de direito constituem uma reminiscência do direito natural como fonte. Há autores que os identificam com este, outros que os fazem repousar na equidade, enquanto sentimento do juto no caso concreto. Sua formulação é indefinida. Há quem os reduza, em última análise, aos famosos preceitos romanos: honeste vivere, alterum non laedere, suun cuique tribuere. De qualquer modo, ainda que se entenda que possam ser aplicados diretamente na solução de conflitos, trata-se não de normas mas de princípios. Ou seja, eles não são elementos do repertório do sistema, mas fazem parte de suas regras estruturais (...) dizem respeito à relação entre as normas do sistema, ao qual conferem coesão. Talvez por isso, como fórmula tópica, eles sejam aplicados sem especificações maiores. Como premissa de raciocínio, eles são mencionados na forma indefinida que depois se determina numa regra geral com caráter normativo
jurisprudencial; (a) tendo em vista os princípios gerais do direito, (b) ninguém deve aproveitar-se de sua própria torpeza, (c) donde se segue que... Observa-se que a expressão “princípios gerais” é tomada como
premissa maior sem especificações. A especificação ocorre na premissa menor que, esta sim, adquire o caráter de norma geral. Ou seja, os princípios gerais, na sua forma indefinida, compõem a estrutura do sistema, não o seu repertório. São regras de coesão que constituem as relações entre as normas como um todo.
São os princípios gerais de Direito vértices bastantes à devida concatenação das normas jurídicas positivadas, revelando-se como apoio de todo o ordenamento jurídico, posto terem gênese no Direito Natural e, assim, influenciando toda a estrutura jurídica pátria. E, sendo assim, a pretensão fundada em motivo torpe encontra frontal barreira, restando a carência de ação:
AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ATO JURÍDICO - ALEGAÇÃO DE SIMULAÇÃO - VÍCIO JURÍDICO QUE NÃO APROVEITA A QUEM PARTICIPOU DO ATO LEGAL - IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.
- A possibilidade jurídica do pedido se infere da permissibilidade de ser levado o requerimento do demandante a juízo, com alegação de direito e que não haja qualquer regra legal que limite a incidência do
texto de que se irradiou a ação ou que o ordenamento legal proíba ou não preveja uma providência semelhante a que se formula no caso concreto.
- A alegação de simulação não beneficia a quem tenha participação do ato negocial com esse vício jurídico, ante regra expressa no artigo 104 do Código Civil, preceito este de ordem moral, advindo do princípio romano nemo auditur propriam turpiditudinem suam allegans. (TJMG. Apelação Cível 2.0000.00.450195-7/0001, Rel. Des. Otávio Portes, Ago/2004)
Neste diapasão, a torpeza levará à impossibilidade jurídica do pedido, que, por sua vez, significará a carência de ação e extinção de eventual processo judicioso.